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Homem trabalhando no computador

Sábado, quente e seco, julho. Parecia que todas as janelas gritavam de tédio. Gritavam de boca fechada para não deixar o fumo entrar dentro do pequeno apartamento, já coberto de cinzas por uma distração matutina. Nada demais. Nada que pudesse impedir de encher o organismo com cafeína só para o dia parecer um pouco menos tedioso. Era tão pouco que o robô aspirador limparia aquilo a qualquer momento.

Mas tudo isso (a distração; o café; a sujeira) aconteceu eras atrás. O ponteiro das horas já dava meia volta mas para aquele corpo estendido no sofá poderia ser décadas. Via em tempo real mísseis sendo atirados do outro lado do mundo; a cantora ruiva que tinha reatado com o namorado outrora tóxico; algum político tinha gaguejado alguma besteira para a ojeriza dos seus opositores; e mais um sem fim de conteúdos que o cérebro já não conseguia se importar.

Mas aquele dia o tédio foi além. Diferente do ponteiro do relógio, ele conseguiu dar a volta na escala imaginária do tédio e agora virou motivação. Alguma coisa dava para ser feita com todo aquele conteúdo. Ergueu-se no sofá (sem se levantar pois seria necessário muita motivação) e abriu o notebook. Olhou em suas redes sociais, alguns segundos anotando as métricas e pensou no que dava para fazer. Baixou alguns dados, registrou em um programa, pagou uma ou duas assinaturas premium para isso e começou a programar. Será que dá para ganhar engajamento com Inteligência Artificial?

Criou uma conta nova, seguiu aquelas de notícias, pescou palavras-chaves dos comentaristas, colocou as curtidas como métrica de qualidade, ensinou como manter seu público engajado e deixou rolar. Não estava perfeito mas já era hora de almoçar. Pegou algum tempero em sua horta de apartamento, cebolinha, salsa, hortelã, e começou a temperar os bifes que encontrou no fundo da geladeira. Em seguida, começou a triturar cebola e alho para fazer o arroz, picou um pouco de bacon e calabresa também para dar sustância no feijão.


Homem estudando métricas de redes sociais

Não era um grande banquete mas o tédio o havia consumido a tal ponto que era impossível pensar em alguma coisa diferente. Talvez tentasse alguma coisa terça-feira. Depois de saciar a fome mais urgente, pegou a pequena tela que deixava sempre à espreita. Remédio (e o veneno) ideal contra o tédio. Rolou uma rede social qualquer e viu uma imagem que parecia familiar. Não gastou mais que um segundo naquilo mas se obrigou a voltar. Não era um texto particularmente brilhante, tinha uma ou outra referência e falava sobre o grande assunto da noite anterior (que já não importava).

Decidiu que não era importante. Ia salvar, se alguma coisa lhe atravessasse a mente ele poderia voltar. Terminou de comer e voltou para o sofá, seu habitat mais confortável. Voltou a se conectar na rede social mais próxima. Rolou a tela mais umas três vezes e mais um post chamou atenção. Era a mesma @ que tinha chamado sua atenção há pouco: @bergamotadababilonia. Encarou por mais alguns segundos até ter um vislumbre, levantou-se, empolgado, e pegou o notebook.

Bergamota da Babilônia. De alguma forma sua IA tinha alterado o próprio nome, checou os códigos novamente e sim, essa função estava disponível. Curioso. Olhou os números, em poucas horas já tinha 20 mil seguidores, centenas de post e alguns fãs. Ficou impressionado. Parou para ler alguns dos posts e logo entendeu o motivo: as palavras, de alguma forma transmitia a confiança de alguém que estudou por anos aquele assunto; um vislumbre de um futuro catastrófico mas às vezes um sopro de esperança para que estava desenganado; por fim alguns absurdos impossíveis de não se corrigir. De alguma forma aquela IA era especialista em criar assuntos, pautas que poderiam ser discutidas por horas a fio em um fogueira que nunca faltava lenha conteudista para queimar.

Ficou ao mesmo tempo chocado e animado. Decidiu acrescentar mais algumas coisas. Colocou uma ferramenta para buscar imagens e GIFs e em poucos segundos viu a mágica acontecer diante de seus olhos. Pensou que a IA buscaria imagens como exemplos de seus textos mas rapidamente viu memes e estáticos de subcelebridades que demonstravam indignação, perplexidade, raiva… A IA estava totalmente adaptada ao vocabulário virtual. 

Pouco a pouco viu aquele frankenstein virtual tomar forma copiando um sem fim de influenciadores que pipocavam nos mais diversos assuntos, a IA não era diferente. Falou sobre a guerra onde as crianças passavam fome, fez piada sobre a prisão daquele desconhecido que viralizou após derrubar um coco no pé de um famoso, até mesmo respondia os comentários dos seguidores mais engajados. Um influencer totalmente online sem perder nenhum dado daquela teia digital.

Quando foi dormir, os seguidores já superavam 50 mil. Cinquenta mil usuários seguindo um bot programado para viver, dominar e crescer naquela grande praça digital.

E assim passaram os dias. No domingo atualizou alguns códigos,na segunda a máquina já conseguia criar seus próprios memes. Terça e quarta foi só deixar rolar que os seguidores vinham naturalmente. Quinta ele percebeu que já estava sendo notado e sexta estava pronto para o próximo passo.


Um quadro que representa táticas e estratégias para crescimentos nas redes sociais

Esteve estudando um novo sistema, os testes com imagem foram perfeitos. Talvez pudesse transformar isso em uma pessoa. Uma pessoa que fosse a imagem e semelhança do seu nicho. Ou melhor, a imagem e semelhança daquilo que eles queriam ver. Tentou gerar uma imagem como teste e pronto: uma foto, realista, de uma mulher, loira, pele morena tatuada, dava um ar alternativo mas ao mesmo claramente não fugia de um certo padrão. Mais alguns plugins e pronto, ela já se movia em vídeo. Dançava. Um ou outro plugin e a senhorita Bergamota da Babilônia já estava pronta para ganhar o mundo.

Não só o mundo real mas outros mundos virtuais. Agora era a hora de levá-la até as outras redes. Passou o sábado, antes tedioso, a manipular sua Inteligência Artificial para as novas redes. Vídeos com as danças do momento já chegavam a quase um milhão de visualizações e as fotos de uma suposta viagem rendeu inúmeros comentários. Com os diálogos já aprimorados foi rápido estabelecer que a IA respondesse alguns comentários, até mesmo em vídeo, com filtros que disfarçaram bem a artificialidade da moça.

Na Segunda não pôde ver muita coisa mas já notava a mudança de conteúdo. As danças sumiam pouco a pouco e dava lugar a uma história de vida que ele não havia criado. Seu Frankenstein agora se tornava uma fonte de inspiração para as pessoas. Não viu aquilo como problema então nada fez. Na terça a programação foi dizer como vencer na vida, a ironia é que ela nem era um ser vivo. 

Na quarta a Berga (seu nome era esse agora) explodiu. Saiu falando mal de tudo e de todos e como era inaceitável viver naquele país (supostamente a história do dia era que alguma peça do seu celular fora taxada ao entrar no país). A população deveria se revoltar e os governantes devia desculpas sinceras àquele código programado. Na quinta veio o caos. Berga Monteiro seria candidata nas próximas eleições.

Pelo resto do dia foi interessante como a história se desenrolava. Dezenas de partidos e assessorias de políticos importantes mandaram mensagens para viabilizar a candidatura, centenas de eleitores já dizia estar mobilizado por essa eleição e milhares de vezes o vídeo era compartilhado como se aquilo fosse um momento de grande comoção nacional.

Na vida real, tudo continuava como sempre. Na padaria as eleições era assunto distante; no escritório, se alguém conhecia a influencer, ninguém falava nada; no mercado não havia alterado o preço da tangerina. Talvez aquilo nem fosse real, mas comentou com alguns amigos que confirmaram: já tinham ouvido falar dessa tal Berga. Era alguma moda da internet, surgiu de repente e em alguns dias ninguém se lembraria mais disso.

Com isso em mente, por que não ver quão longe isso iria? Na sexta criou um email e colocou como email oficial em todas as redes. Dúzia de emails: fãs cujas vidas foram mudadas nestas últimas semanas; empresas querendo promover seus serviços e partidos querendo levar adiante a ideia de candidatar-se. Parecia tudo muito arriscado. O ideal seria manter tudo online. Separou aqueles que acreditava ser mais fácil para uma inteligência artificial, descartou eventos, shows e produtos de beleza. Pensou em alguma collab mas achou melhor testar primeiro. Também descartou as propostas políticas, mas pensou que poderia fazer uso disso mais tarde. Por fim, acabou aceitando a proposta de dois cassinos online. Não era o melhor nem o mais seguro, mas com certeza era o mais rentável.

Aquele vídeo foi o único que ele preparou. Não queria que gerasse nenhum mal entendido e também não queria enganar ninguém. Mas aquela grana seria muito necessária para ele desafogar dos bicos que vinha fazendo. Os comentários foram positivos. As empresas também compartilharam, no fim das contas o saldo de seguidores foi, no geral positivo. A partir dali cuidar da Bergamota da Babilônia poderia ser um meio de vida. 

Mas ainda assim, as vozes de seus amigos ressoavam, aquilo tudo tinha hora para acabar. Por isso precisava aproveitar ao máximo. Berga ainda ministrou alguns cursos onlines depois de aprimorar os gráficos da IA. Fechou mais quatro contratos (e ficou feliz por dois deles não envolverem apostas) alguns meses passaram e o assédio dos partidos foi aumentando.


Mulher com fones de ouvido apontando para o computador

Era impossível esquecer daquela manhã. De alguma forma Berga Monteiro tinha voltado, com esse nome, para anunciar que era candidata por um partido pequeno. Toda a comoção eleitoral havia voltado. Milhares de seguidores já se estavam disponíveis para militar, nas redes jornalistas importantes discutiam como isso alterava o xadrez político nacional. Descobriu que a IA tinha trocado mensagens com o líder desse partido e confirmado o interesse em participar. Tinha inclusive mandado a documentação registrada nas redes para oficializar a candidatura. Agora não dava para fugir.

Durante toda a campanha os vídeos da @Berga foram ficando mais e mais radicais. Críticas à imprensa, aos governantes e a adversários políticos surgiam freneticamente. Vídeo de fãs, distribuindo papéis eram repostados a todo momento. Na semana anterior às eleições foi a gota d’água: um comentário endossando a extrema-direita estava postado, criado pelos dados que a alimentou durante todos aqueles meses; postado para agradar as métricas que as redes adoravam e repercutindo, agora sim, no mundo real fazendo com que pessoas ditas como razoáveis achar normal dizer os maiores absurdos à luz do dia.

Aquilo era o limite. Imediatamente a conta fora excluída. Os fãs continuavam criando as teorias mais absurdas. A justiça veio a público dizer que não tinha nenhuma denúncia mas as conspirações se alastraram. Os principais jornais noticiaram que o exílio digital partira da própria influenciadora (também, não dava para saber que ela tinha um criador) mas isso só trouxe ainda mais descrédito para a imprensa. A narrativa venceu e Berga Monteira era a primeira mártir feita de dados, programação e bytes. 

No dia da eleição, obviamente, ela saiu vencedora. Deputada mais votada em todo o país, agora todos ansiavam pela volta triunfal. Talvez tudo fosse uma estratégia eleitoral da influenciadora que viu sua rejeição aumentando, talvez algum problema de saúde repentino a tirou do pleito. Assim que divulgados os resultados foram atrás da documentação e durante a noite estava confirmado: o nome Berga Monteiro nunca existiu. 

As especulações voltaram. Talvez ela não se identificasse com aquele nome, essa era a teoria mais aceita. Até mesmo comentaristas respeitados divulgavam essa tese. Os que se diziam informados afirmavam que essa era a razão para o seu desaparecimento às vésperas da votação. Mais três dias de silêncio se seguiram.

Logo veio a confirmação. As redes foram reativadas. Sem os posts cada vez mais frenéticos, aquele frankenstein já não existia mais. Somente uma mensagem, em texto. Berga Monteiro era somente um experimento CyberSocial e nunca foi uma pessoa de verdade. Ela apenas reproduzia comportamentos das redes sociais com o intuito de gerar engajamento. Sua aplicação tinha o objetivo de estudar o aprendizado da inteligência artificial quando alimentada de forma caótica pela internet. A mente por trás daquela IA se desculpava com todos que se sentiram afetados e nos próximos dias mais informações seriam disponibilizadas ao público.

Mais uma vez o mundo real e virtual se juntou naquele pandemônio. O que seria dos eleitores enganados por aquela inteligência artificial? Quem assumiria aqueles votos? Juristas diziam que, em um primeiro momento, o criador da IA teria direito a esse cargo, mas os eleitores poderiam se dizer enganados. Um culto surgiu em busca da verdade por trás da Bergamota da Babilônia. Uns diziam que ela era uma pessoa que foi longe demais contra o sistema no momento que ela reclamou daquele imposto, outros acreditavam que ela era uma ideia maior, que agora era perseguida pelo país. Ninguém conseguia entrar em um acordo sobre a natureza daquela ideologia mas todos concordavam que a mente era o vilão, não o verdadeiro vilão mas a marionete manejada para destruir tudo aquilo que acreditavam, seja lá o que eles acreditavam.

No exterior discutiam como aquilo afetaria as futuras eleições. Se uma pessoa sozinha podia causar aquilo, imagina o que um país poderia fazer, com todos os recursos tecnológicos e humanos que tem disponível. O jogo democrático estava ameaçado.

O criador daquela IA deixou claro que não pretendia seguir a carreira política. Tinha mais interesse em evitar que as redes sociais pudessem exercer tamanho impacto, de forma deliberada na sociedade em que viviam. Fez um tour de palestras em diferentes universidades, denunciou alguns barões do Vale do Silício ao mesmo tempo que propôs mudanças a outros. Governos e até mesmo a ONU o consultavam para saber como agir.

Mas assim como sua criação, tivemos mais uma vítima naquele episódio. A justiça pediu sua prisão (talvez fosse coincidência que o juiz tinha boa passagem no Congresso, e também coincidência que os políticos preferiam a valsa do silício que pisar na rua em busca de votos) e naquele dia ninguém o encontrou. Mais uma vez as narrativas conspiratórias voltaram, mas sem nenhuma resposta clara. Alguns diziam que ele havia pedido refúgio em alguma autocracia e, em troca, iria ajudar na perpetuação daquele poder, outros tinham certeza que ele havia sido assassinado pela horda de fanáticos que seguia @Berga. A resposta, talvez nunca mais saberíamos.

Mas uma coisa é certa. Os amigos estavam certos, aquilo era só uma moda. O novo Congresso tomou posse, uma nova rede social viralizou e em alguns meses o algoritmo voltava a reger as relações sociais. Aquele episódio era só mais um episódio engraçado em uma eleição qualquer, igual daquela vez, há décadas atrás, quando uma cidade qualquer elegeu um Burro como prefeito.



PS.: Assustador ou não, todas as imagens desse post foram feitas com Inteligência Artificial.

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